Autora: Karin Hueck - Revista SuperInteressante Abril 2009, pag. 62
Toda criança nasce com um sexo. Mas nem toda criança acha que nasceu no sexo certo. Quando isso acontece, estamos diante de um dos maiores desafios da medicina.
Quando Nick tinha 3 anos, seu pai John, achava estranho que o menininho gostasse tanto de vestir uma camiseta bem comprida e ficar andando com ela pela casa, como se estivesse de vestido. Também não entendia a fascinação da criança por tudo que era cor-de-rosa ou porque ele só dava nomes femininos a seus animais de pelúcia. Um dia, John presenciou uma cena estranha. Junto com dois outros meninos, o filho brincava no jardim. Mas, enquanto os amiguinhos fingiam ser Batman ou Super-Homem, Nick imaginava ser uma fada-princesa. Aquilo disparou o alarme, o menino gostava demais de coisas de meninas, e ficava muito triste quando tinha de se vestir de acordo com seu sexo. A mãe, então, arriscou, "Nick você gostaria de comprar um vestido?" A reação do filho assustou os pais.
Ele começou a tremer e a ofegar, de tanta felicidade. Foi aí que tudo ficou claro, Nick só seria feliz se vivesse como menina. E foi exatamente isso que os pais fizeram.
Hoje aos 7 anos, Nick se chama Mary. Deixou o cabelo crescer, só usa roupas femininas e mudou de vida. Na escolinha, na Califórnia, quase ninguém sabe que ela é um menino com variação de gênero, que especialistas estimam afetar 1 em cada 500 crianças. E ninguém imagina que ela mudou de sexo ainda durante a infância.
Geralmente é logo no começo da infância que os pais reparam no comportamento estranho. Meninos as vezes tentam arrancar o próprio pênis e meninas não suportam a ideai de usar um vestido. "Só fui perceber que era um menino aos 3 anos de idade, quando a professora mandou os alunos se dividirem por sexo. Eu fiquei chateada, porque antes disso achava que era uma menininha como as outras", diz Luciana, uma paulistana de 28 anos, cujo nome no RG ainda é Luciano.
Em crianças assim, a tendência é a situação só se agravar, Isso porque durante a infância é fácil fazer uma criança se passar pelo sexo oposto, bastam umas roupas cor-de-rosa ou umas camisas de futebol, O problema é quando a puberdade se aproxima.
Na adolescência, a criança começa a ter consciência da sua sexualidade e passa pelas maiores (e mais irreversíveis) mudanças fisiológicas da vida. Já não é um período fácil para quem está satisfeito com o seu gênero, imagine então, para quem rejeita o próprio corpo. Ter seios e menstruar, ou ter barba e engrossar a voz, são o pesadelo de qualquer criança com transtorno de identidade de gênero.
"Metade dos adolescentes transgêneres tentam se matar entre a puberdade e a vida adulta" diz Stephanie Brill, autora do livro "The transgender child" (A criança transgênere, ainda sem tradução para o português). Luciana passou boa parte da sua vida sem fazer sexo, de tanta aversão que sentia a seu pênis. Se para essas pessoas a adolescência é tão traumática, o que pode ser feito? Segundo a sociedade internacional de endocrinologia, a resposta é bloquear a puberdade.
A ideia parece radical, mas já está sendo feita na Europa e nos EUA desde o começo dos anos 2000. Quando uma criança é diagnosticada com transtorno de identidade de gênero, o tratamento começa entre os 10 e 12 anos. Nessa idade, prescrevem-se os bloqueadores de puberdade, originalmente criados para crianças que entram na adolescência muito cedo, aos 7 ou 8 anos. O mais comum deles é o hormônios liberador de gonadotrofina (GnRH), que impede a testosterona e o estrogênio de agir. Sem esses hormônios, o corpo fica "congelado" numa infância eterna. Ele não se desenvolverá para nenhum gênero e ficará sexualmente neutro. O método foi imaginado para que as crianças tenham tempo de decidir a qual sexo pertencem, sem que seu corpo passe pelas mudanças sem volta da puberdade.
"Bloquear a puberdade é um tratamento totalmente reversível. Hormônios e cirurgias, esses não têm volta." diz a psiquiatra Annelou de Vries, da Universidade Livre de Amsterdã, o primeiro lugar do mundo a oferecer esse tratamento. Lá, mais de 100 adolescentes estão neste momento tomando o GnRH para, aos 16 anos, começarem com os hormônios sexuais e aos 18, cogitarem a cirurgia de readequação sexual.
Para John, pai da menina Mary (que nasceu Nick), os bloqueadores são um milagre. "Quero que minha filha passe apenas uma vez pela puberdade, e só no sexo feminino. Ela mal pode esperar para começar com os bloqueadores."
Essa história faz todo o sentido na teoria, mas não na prática. Como é possível diagnosticar com segurança o transtorno de identidade de gênero numa criança tão nova? Peguemos o exemplo de André, um produtor de moda homossexual, de 24 anos. Quando criança, seu brinquedo favorito era uma Barbie Lambada, e ele adorava usar uma toalha na cabeça para fingir ter cabelo comprido.
André nem sequer sabia dizer se era menino ou menina. Hoje, ele namora um rapaz, mas jamais cogitaria mudar de sexo. Como saber, ainda na infância, que ele seria feliz em seu gênero de nascença? "Ainda não conseguimos ter 100% de certeza com crianças. O que avaliamos é a insistência dela em ser, se vestir e se comportar como o sexo oposto durante anos de acompanhamento psicológico", diz Vries. O importante nesses casos é a atitude irredutível. Se a criança um dia diz que é menino e no outro menina, é bem provável que a confusão de gênero não siga até a vida adulta. Mas, como tudo que envolve a mente humana, não há como ter certeza.
Um médico americano, Charles Davenport, tentou quantificar a longo prazo o comportamento de meninos afeminados. Dos 10 garotos que ele acompanhou até a vida adulta, 4 viraram heteros, 2 viraram gays, 3 ficaram incertos sobre sua orientação sexual e apenas 1 deles virou transexual e quis trocar de sexo. Isso também se comprova com estatísticas: na infância, 1 em cada 500 crianças pode apresentar alguma variação de gênero. Já entre adultos, o transexualismo é muito mais raro: calcula-se que sejam apenas 1 em cada 30 mil homens e 1 em cada 100mil mulheres. Ou seja, se você conhecer um menino que gosta de brincar de boneca, não há razão para se alarmar. E é justamente isso que torna o tratamento com bloqueadores de puberdade tão polêmico.
Joanne tinha 8 anos quando contou à mãe que, na verdade, era um menino e queria ser chamado de Jack. Sem que os pais soubessem, já dizia para os coleguinhas no colégio que só atenderia por "ele". Para a mãe, a mudança foi traumática, ela precisou de um ano para conseguir fazer a troca de pronomes.
Em compensação, Jack deixou de ser uma menina deprimida para virar o menino contente que é hoje, aos 10. "Os seios de Jack estão começando a despontar, e eu sei que deveria pensar em bloqueadores e cirurgias, mas é muito difícil para mim", diz Anna, a mãe, no livro sobre crianças transgêneres.
Deixar o filho viver no sexo oposto inclui uma série de problemas que nenhum pai gostaria de enfrentar. É preciso contar à família que aquela menina agora atenderá pelo nome de Jack, é preciso pedir que o professor fique atento a provocações com o novo menino na escola e é preciso se despedir do sonho de ver a filha casar e ter filhos. "Eu sempre quis brincar de bola com meu filho, mas percebi que com Mary isso não se tornaria realidade", conta John, pai de Mary que até os 4 anos, era Nick.
No Brasil, até as leis atrapalham a mudança. O conselho federal de medicina proíbe qualquer intervenção com remédios antes dos 18 anos, e a cirurgia é vetada até os 21 anos. Além disso, não é simples convencer alguém de que o filho talvez precise trocar de sexo. "No Brasil, quando a família entende que a mudança logo cedo ajuda, os pais vão sozinhos atrás de remédios e hormônios para os filhos", diz Alexandre Saadeh, psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Tudo indica que as causas para o transtorno sejam biológicas. Em 2008, um estudo do Instituto Karolinska, na Suécia, mostrou que a estrutura e o tamanho de diversas áreas do cérebro são parecidas em homens gays e mulheres hetero, e o mesmo acontece em lésbicas e homens hetero.
Assim, poderia haver uma mente masculina dentro de um corpo feminino e vice-versa. "Imagina-se que pode haver alguma influencia de hormônios durante a gestação. Por exemplo, se o feto é do sexo masculino, mas entrou em contato com hormônios femininos, é possível que o cérebro do bebê, se forme de maneira diferente." diz Carmita Abdo, do projeto sexualidade do Hospital das clínicas. Quando os pais percebem que não adianta forçar a barra para mudar o comportamento do filho, é geralmente também quando enxergam que são eles que precisam mudar.
Ninguém escolheria ser transexual. Eles são a minoria sexual mais discriminada, abaixo de gays, lésbicas, bissexuais e travestis. 73% deles sofrem assédio nas ruas e 45% rompem com a família quando anunciam seu verdadeiro gênero. Os bloqueadores de puberdade ajudam a aliviar o preconceito porque deixam a pessoa com uma aparência mais natural depois da troca de sexo.
As contraindicações são muitas, há indícios de que atrapalham na calcificação dos ossos e se o tratamento for iniciado muito cedo, com bloqueadores e hormônios na puberdade, a pessoa quase certamente ficará infértil. Além disso, a dose do GnRH pode chegar a R$ 3mil.
"Eu vejo que, aos poucos, os pais estão deixando seus filhos fazer essa transformação, mesmo que escondida. Eles preferem ver os filhos felizes e vivos, do que infelizes no sexo biológico" diz Brill. Há alguns anos, quem recomendasse bloqueadores de puberdade a crianças saudáveis seria chamado de louco ou radical. Hoje, alguns lugares já se acostumaram com o arco-íris da sexualidade humana. A Park Day School, em Oakland, nos EUA, é uma escola que dá as boas-vindas a essas crianças. Nos últimos anos, 8 aluninhos que nasceram num sexo, mas vivem no outro, passaram por lá. Na hora de ir ao banheiro, podiam escolher entre o feminino, o masculino e o neutro. Mas nem é preciso ir tão longe: no Mato Grosso do Sul, alunos da rede estadual que vivem no sexo oposto ganharam na justiça o direito de ser chamados pelo nome de sua preferência. A mudança já começou.
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